Sempre tive uma raiva miudinha aos artistas.
Gosto especialmente de reparar como qualquer escritor consegue ser extremamente observador e sensível aos mais ridículos detalhes...quase ao ponto de se poder pensar que a vida passa por ele em câmara lenta! Para um escritor (pessoa bastante sensível, sentimental, romântico... mulher, vá!) qualquer objecto ou pormenor presente numa história parece ganhar toda uma importância e uma dignidade que eu considero, simplesmente, entediante de tão pouco natural.
Qualquer escritor que se preze consegue estar 4 páginas a descrever, por exemplo, um escritório, que nada tem de interessante ou de invulgar a não ser o cadáver mutilado junto à janela ou, noutro cenário, um extra-terrestre a grafitar uma das paredes...ainda assim o escritor irá entreter-nos durante 3 páginas a explicar de que forma os velhos lápis de cor se dispunham aleatoriamente dentro do estojo que repousava em cima da mesa, conferido-lhe um aspecto descuidado; Como os cortinados de seda amarelos cheiravam a tabaco de cachimbo mas que ainda assim davam um ar refrescante ao escritório; Como a poltrona de madeira com estofo de couro esverdeado junta à secretária lhe fazia lembrar o seu avô, etc etc etc...etc etc... POR ISSO, também eu vou escrever um pequeno texto sobre um episódio extremamente caricato que vivi:
"Entrei.
Num gesto contínuo fechei e tranquei a porta de madeira de má qualidade que libertou um perro suspiro ao raspar contra o soalho desnivelado de lajes escuras, já bem erodidas pelo tempo e pelo constante vaivém de pessoas, que tal como eu necessitaram de visitar aquele lugar.
Enquanto arregaçava a camisa de algodão bege e escarafunchava desajeitadamente no cinto, olhei em redor como se procurasse um ponto fraco na arquitectura daquela divisão; Um sítio pelo qual alguém pudesse entrar e surpreender-me, uma janela ou buraco naquelas paredes brancas através do qual me conseguissem observar... mas constatei com alívio que o compartimento era claustrofobicamente estanque.
Olhei então para a retrete onde me ia sentar. Mais uma vez recebi um reconfortante sentimento ao deparar-me com uma velha e lascada sanita, no entanto impecavelmente asseada e actualizada com um autoclismo novinho em folha, que apesar da simplicidade do seu mecanismo, quase parecia irradiar um brilho tecnológico devido ao contraste que estabelecia com tudo o resto naquele apertado cubículo.
Em cima desta visão resplandecente encontrei um rolo de papel higiénico rugoso e pouco convidativo a esfregar fosse onde fosse, do qual imediatamente retirei três tiras com cerca de palmo e meio, as quais usei para cobrir o ressequido e amarelado plástico onde de seguida me sentei, mas não sem antes confirmar pelo canto do olho se de facto tinha trancado correctamente a primitiva fechadura que me separava do mundo exterior, composta por uma argola metálica aparafusada à parede e um ganchinho aparafusado à porta.
Já sentado, e com as calças de ganga enroladas à volta dos tornozelos, tinha agora tempo para observar o resto daquela divisão que nos próximos cinco minutos ia ser o meu mundo exclusivo:
Por cima de mim, no tecto, num dos cantos, estava uma pequena teia de aranha, aparentemente imune à passagem do tempo, e provavelmente há muito abandonada pela criatura que a criou, sendo que nesta teia só consegui encontrar finos flocos de tinta branca ressequida que se haviam solto da parede e que ali tinham encontrado amparo; Por baixo dos meus ténis já algo gastos encontrei um ralo circular coberto por uma grelha metálica, que ali se apresentava inútil, completamente entupido de pó, cotão, beatas de cigarro e outros detritos que não consegui identificar, e, um pouco mais à frente, no canto atrás da porta, vi um piaçaba (daqueles velhinhos, com cabo de madeira e "pelos" em plástico laranja, unidos por uma anilha ferrugenta), que repousava esquecido, tristemente inclinado contra a parede, como se se lamentasse da sua cruel e desvalorizada existência..."
Por Guerra, o Corrécio